Pensar o ISEB hoje: Soberania Nacional e Outros Temas Inconclusos
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1955, permanece, completados 70 anos de sua fundação, como uma das experiĆŖncias mais densas e propositivas de elaboração intelectual e polĆtica no Brasil republicano. Criado em meio Ć efervescĆŖncia das lutas por desenvolvimento e autodeterminação no mundo do pós-guerra, o ISEB buscou oferecer respostas teóricas e estratĆ©gicas aos impasses de um paĆs atravessado por infraestruturas ainda precĆ”rias, dependĆŖncia econĆ“mica e elites associadas a interesses externos. Sua história, embora abruptalmente interrompida pelo golpe civil-militar de 1964, oferece chaves analĆticas preciosas para pensar temas urgentes do presente: soberania, nacionalismo popular, projeto de nação e enfrentamento das formas contemporĆ¢neas de dominação imperial.
Inserido no MinistĆ©rio da Educação, o ISEB foi concebido como um órgĆ£o de assessoramento tĆ©cnico e formação estratĆ©gica de quadros, mas logo se projetou como um nĆŗcleo de formulação intelectual voltado Ć transformação estrutural do Brasil. Inspirado por experiĆŖncias de planejamento estatal e por debates do pensamento social latino-americano, o instituto reuniu um grupo heterogĆŖneo de intelectuais ā economistas, sociólogos, filósofos, historiadores, cientistas polĆticos ā que partilhavam, acima de suas diferenƧas, a crenƧa na possibilidade de uma revolução nacional, planejada e consciente. Num paĆs marcado por desigualdade, atraso e subordinação, pensar a Nação tornava-se tarefa intelectual e polĆtica de primeira ordem.
NĆ£o se tratava, contudo, de um espaƧo ideologicamente uniforme. TrĆŖs grandes correntes coexistiram no interior do ISEB: o nacional-desenvolvimentismo liberal, liderado por HĆ©lio Jaguaribe, que apostava na alianƧa entre Estado e burguesia nacional como motor da modernização econĆ“mica e da industrialização autĆ“noma; o nacionalismo de esquerda, representado por Ćlvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e outros, que propunham uma ruptura mais profunda com a ordem dependente e viam no povo ā especialmente nos trabalhadores e camadas populares ā o sujeito histórico da transformação; e o catolicismo progressista, ligado a setores da Igreja e a intelectuais como CĆ¢ndido Mendes, que buscavam conjugar justiƧa social, valores humanistas e desenvolvimento econĆ“mico.
Essa diversidade, longe de paralisar o instituto, foi seu maior trunfo. O ISEB operava como um verdadeiro laboratório de pensamento estratĆ©gico nacional. Era um espaƧo de sĆntese, crĆtica e elaboração, onde as contradiƧƵes da formação brasileira eram debatidas com densidade e profundidade. O subdesenvolvimento era entendido nĆ£o como uma etapa transitória do progresso, mas como uma forma estrutural de dominação, resultado de uma articulação entre elites locais subordinadas e interesses externos ā uma interpretação que, dĆ©cadas mais tarde, seria sistematizada nos marcos da Teoria da DependĆŖncia.
Nesse sentido, o ISEB foi precursor da crĆtica anticolonial e anti-imperialista na AmĆ©rica Latina, sobretudo em seus anos final. Antes mesmo da institucionalização desses debates em fóruns continentais, os isebianos jĆ” apontavam os limites do liberalismo importado, da modernização subordinada e da falsa universalidade dos modelos eurocĆŖntricos. Ćlvaro Vieira Pinto, em particular, elaborou categorias centrais como a de Ā«consciĆŖncia nacionalĀ» ā entendida como a capacidade de um povo perceber-se historicamente situado, identificar seus entraves estruturais e assumir a tarefa da transformação. O colonialismo, argumentava ele, nĆ£o era apenas uma imposição externa de dominação econĆ“mica, mas tambĆ©m uma estrutura ideológica que minava a autoestima coletiva e neutralizava a capacidade criadora dos povos perifĆ©ricos.
Ao propor a construção de um projeto nacional, o ISEB nĆ£o reivindicava um nacionalismo excludente ou xenófobo, mas um nacionalismo histórico e integrador, voltado Ć autodeterminação econĆ“mica, polĆtica e cultural do povo brasileiro. Ć nesse horizonte que se insere a noção de Ā«revolução brasileiraĀ» ā conceito que se mostrarĆ” central na produção teórica isebiana, conforme analisado por AngĆ©lica Lovatto. A revolução brasileira, para o ISEB, nĆ£o era um processo meramente insurrecional, mas uma tarefa histórica inacabada: consistia na superação do atraso herdado do passado colonial-escravista e na construção de uma sociedade moderna, soberana e justa. Tratava-se de concluir a revolução burguesa no Brasil, abandonada por uma elite associada e substituĆda por uma nova hegemonia popular e nacionalista.
Essa revolução exigia reformas estruturais ā agrĆ”ria, urbana, educacional, cultural ā e a construção de um Estado forte, orientado por critĆ©rios de planejamento racional, coesĆ£o social e defesa intransigente da soberania. Nesse ponto, o ISEB antecipava debates hoje centrais, como a crĆtica Ć s formas de financeirização da economia, Ć desindustrialização precoce e Ć dependĆŖncia tecnológica do Brasil diante de cadeias globais controladas por potĆŖncias centrais. Sua defesa do desenvolvimento autĆ“nomo e da industrialização nacionalizada continua atual frente ao cenĆ”rio de recolonização econĆ“mica promovido pelo neoliberalismo e pela financeirização global.
As atividades do ISEB nĆ£o se limitaram Ć produção de livros e diagnósticos. O instituto promoveu cursos, seminĆ”rios e ciclos de formação que influenciaram profundamente a formação de quadros tĆ©cnicos e polĆticos, incluindo setores nacionalistas das ForƧas Armadas, jovens lideranƧas da burocracia estatal, sindicalistas e estudantes. Atuou diretamente no debate pĆŗblico durante os governos de Juscelino Kubitschek e JoĆ£o Goulart, defendendo propostas de reformas estruturais e de aprofundamento da democracia.
A trajetória do ISEB pode ser dividida em duas fases. A primeira, entre 1955 e 1960, caracterizou-se por um forte investimento na pesquisa teórica, na consolidação conceitual e na sistematização dos fundamentos do subdesenvolvimento brasileiro. A segunda, entre 1961 e 1964, foi marcada por uma inflexĆ£o mais militante: o instituto passou a intervir de forma mais direta no debate pĆŗblico, assumindo posiƧƵes polĆticas mais ousadas, o que atraiu a hostilidade de setores conservadores e antinacionalistas. NĆ£o por acaso, foi um dos primeiros alvos do golpe de 1964. Em abril daquele ano, poucos dias após a deposição de JoĆ£o Goulart, o ISEB foi extinto, e seus membros foram perseguidos, exonerados ou empurrados ao exĆlio. Seu acervo foi disperso, sua memória silenciada e seus projetos truncados.
Entretanto, o desaparecimento institucional do ISEB nĆ£o significou o apagamento de seu legado. Ao contrĆ”rio, muitas das suas proposiƧƵes voltaram Ć cena nas dĆ©cadas seguintes, alimentando a crĆtica Ć dependĆŖncia, a defesa de um novo desenvolvimentismo, os movimentos por reforma agrĆ”ria, a educação crĆtica e a soberania tecnológica. Hoje, diante da renovação das ameaƧas Ć soberania nacional ā seja pela financeirização da economia, pela entrega de recursos estratĆ©gicos, pela captura das decisƵes polĆticas por interesses externos ou pela imposição de agendas globais descoladas da realidade brasileira ā, o pensamento isebiano readquire vigor e atualidade.
Discutir o ISEB, setenta anos após sua fundação, Ć© revisitar uma tradição crĆtica que nĆ£o se acomodou aos parĆ¢metros dominantes do liberalismo perifĆ©rico, mas ousou propor um outro Brasil. Um Brasil onde o planejamento democrĆ”tico se sobrepusesse Ć lógica do mercado desregulado, onde a cultura popular fosse valorizada como expressĆ£o da identidade nacional, onde o desenvolvimento nĆ£o fosse sinĆ“nimo de submissĆ£o ao capital estrangeiro, e onde o povo brasileiro pudesse ser sujeito ā e nĆ£o apenas objeto ā da história.
O desafio, hoje, Ć© recuperar esse legado sem fetichizĆ”-lo, relendo-o Ć luz das novas formas de imperialismo, das lutas ambientais, dos desafios da soberania digital e das demandas de uma sociedade plural, marcada por profundas desigualdades de classe. O projeto de revolução brasileira, tal como concebido pelos isebianos, permanece inconcluso ā mas sua atualização crĆtica pode oferecer um horizonte de reconstrução democrĆ”tica, soberana e popular. Em tempos de crise, repensar o Brasil com a ousadia e a profundidade que caracterizaram o ISEB Ć©, mais do que um gesto de memória, um imperativo histórico.